Coração tão branco (Javier Marías)

09-02-2011 21:55

Dizem que a vida de casado é uma vida compartilhada, onde segredos não são bem-vindos, tampouco aconselhados àqueles que pretendem ter um longo matrimônio. Todavia, podem segredos perdurar e causar efeitos não só em um casamento, mas em seus herdeiros? É possível que a vida a dois seja uma doença que se não averiguarmos os sintomas pode deteriorar uma ou ambas as partes?

Pouco divulgado aqui no Brasil, Javier Marías é considerado um dos grandes escritores espanhóis da atualidade, tendo em seu currículo diversos prêmios, romances, contos e sem contar uma cadeira na Real Academia Espanhola. Lançou seu primeiro romance em 1971, mas foi em 1992 com o lançamento de Coração tão branco, lançado em 2008 pela Companhia de Bolso e com tradução de Eduardo Brandão (que traduziu Os Detetives Selvagens e 2666 de Roberto Bolaño), que Marías consagrou-se definitivamente como escritor.

Em Coração tão branco, Juan, nosso narrador e protagonista, é um tradutor e intérprete que conheceu sua mulher, Luisa, durante um trabalho em que ele serviu de intérprete e ela como sua “supervisora”. Após a cerimônia de casamento, Juan tem estranhos presentimentos – alertando sobre um desastre – que se aglutinam, passando por sua lua de mel até uma temporada de oito semanas no exterior (como requer seu trabalho). Através de parábolas com a história de MacBeth (de onde foi tirado o título), nosso narrador, o próprio intéprete e personagem principal, transcorre sua vida de casado e rememora obscuros momentos de seu passado.

 

A abertura do romance difere de tudo que encontraremos, primeiro o autor, Javier Marías, chocará e logo após, vagarosamente, tomará providências para que o leitor se acostume com as consequências daquela primeira cena aparentemente isolada. É mérito do autor conseguir aliviar a tensão de seu personagem principal com cenas patéticas e de humor duvidoso como os pensamentos involuntários de Juan quando não consegue traduzir certas sentenças de maneira fiel. Como um tradutor que conhece quatro idiomas e é ironico notar como lhe faltam palavras traduzíveis para sua língua nativa. Ele tenta interpretar, adaptar e não há fidelidade como seu próprio passado.

Este é um romance em que seus personagens interpretam histórias e fatos – fragmentados. Para entender sua própria história, Juan passa por momentos de coincidências e acasos imperceptíveis – e outros descarados – que tomam proporções dúbias ao longo de toda sua história, desde seus pressentimentos até os fatos que realmente se desenvolvem a sua frente. A opção de detalhar cada parte da narrativa, sem deixar escapar, mesmo que isso resulte em contar uma história antes de explicar a outra, Juan nos prende a cada página com suas explicações sobre seu relacionamento com Luisa, com seu pai e sobre sua vida que, aparentemente, só toma rumos por incidentes ou acasos – como Ranz, seu pai, ter conhecido Teresa, sua tia e primeira mulher de seu pai, em Havana, mesmo lugar em que ele passa sua lua de mel e onde desencadeia uma história psicológica após uma noite de eventos incidentais.

Numa desestruturação narrativa em que ao querer se dizer algo e na verdade dizendo não se revela muito, Marías consegue construir suspense sob a óptica de um personagem que poderia (e deveria) ser uma pessoa articulada e na verdade as palavras lhe faltam (em uma clara evidência de que o emissor e o receptor são obrigados a falar e a ouvir). O papel de cada um não está claro no romance, será que Juan é um emissor ou receptor? Será ele o interlocutor ideal para expressar-se com clareza ao leitor? Afinal, suas notas de rodapé, ou melhor, seus parênteses tão presentes e gritantes confundem o leitor até o ato final, onde, com clareza, ele conseguirá expor todas as suas ideias em paralelo.

Coração tão branco é um exemplar de que as palavras não são inocentes, elas determinam o destino de um ser humano, seja falada ou ouvida, traduzida ou intraduzível, para realizar ou evitar algo, transformando a realidade que conhecemos em algo mais amplo, como ironia pode esconder ressentimento ou lembranças vagas podem esconder os maiores traumas.